A ibiporaense Marilza Ribeiro recebeu no último dia 13, no teatro Zaqueu de Melo, em Londrina, um dos três prêmios na categoria "experiente" na 10ª Ciranda de Poesia e 2ª Ciranda de Contos do Norte do Paraná.
Seu poema premiado foi "Terra Bonita", em alusão a Ibiporã. Ela o declamou utilizando imagens da cidade ao fundo. Marilza também concorreu na categoria contos, com o texto "Uma história de amor", sendo selecionada entre os dez finalistas.
Além de apreciadores da literatura, o concurso teve grande participação de crianças e adolescentes em idade escolar, muitos idosos e também detentos da PEL (Penitenciária Estadual de Londrina).
Confira os textos da ibiporaense:
TERRA BONITA
Minha cidade é quase sempre a mesma coisa.
Tudo acontece novamente mas...
nada acontece de novo.
Sempre na mesma hora
passam os operários
com suas bicicletas barulhentas.
Com o sol a pino,
passa o trem apitando.
Quando cai a tarde,
volta o mesmo trenzinho.
As pessoas vem e vão.
Sorriem. Cumprimentam-se.
Passam e acenam um alô.
Outras, apenas olham, olham,
e somem.
Mas gosto dessa cidade repetitiva.
Finquei aqui as minhas raízes.
Posso dizer que cresci demais e ela também.
Contemplo-a quieta
e seu burburinho é musica.
Me volta à lembrança
toda a infância que vivi,
correndo pelos caminhos,
na época, empoeirados.
Hoje o asfalto encobriu
os passos que outrora andei.
O tempo de criança passou
mas a criança ficou.
Muitos sonhos consegui tornar reais.
Outros ruíram e caíram no esquecimento.
Agora, criança crescida e quase sem sonhos,
digo apenas que sou parte desta terra roxa.
Desta Terra Bonita.
UMA HISTÓRIA DE AMOR
De longe era possível ouvir os grunhidos. Não havia como saber se era humano ou animal. Não tinha numa definição. Na cerca, um bem te vi também gritava e lá longe, outro respondia. No quintal, o homem de cabelos grisalhos estava absorto em seus pensamentos. Sua figura recortava-se contra o céu azul de inverno. Seus olhos eram do mesmo tom.
Os gritos não o incomodavam. Já faziam parte de seus dias. De suas noites. De sua vida. Quando ele era criança, levava-a nos ombros para passear pelos campos. Ele sempre calado e ela sempre barulhenta. A menina agarrava os cabelos do moleque enquanto atravessavam o riacho limpinho. Ele jamais imaginaria que teria de carregá-la quando adulta. Só que agora ela não sorria mais. Ela nem sequer o via. Algumas vezes, ela o fitava com seus olhinhos embaçados e murchos. Parecia reconhecê-lo do fundo de sua dolorosa angústia... Mas era apenas utopia. Ela era somente um vegetal cuja seiva o tempo vinha sugando lentamente.
Ele andava pelo quintal, mãos às costas, enquanto o vento despenteava seus cabelos grossos. Lembrava do tempo em que moravam com os pais no campo. Tudo tão simples. As outras irmãs, vendo a miséria em que viviam, trataram logo de arrumar casamento e sumir pra cidade. Sabiam que aquela que ficasse por último teria que cuidar da irmã enferma. Ele nunca pensou em deixá-la, mesmo sabendo que ficaria cada dia mais difícil lidar com ela.
Os pais, já velhos, foram definhando até que o pedacinho de terra em que viviam transformou-se em uma imensa quiçaça, com uma trilha no meio, onde o carrapicho grudava nas barras das calças. Os quatro viviam lá dentro meio que abandonados à própria sorte, onde o único em condições de saúde boa era ele, o homem hoje envelhecido à força, pensativo no quintal.
O casebre não era próprio, por isso, quando os pais se foram do mundo, os dois tiveram que arranjar outra morada. A assistente social os descobriu e cedeu-lhes um teto, uma casinhola bem do tipo da anterior. Sem recursos, eram sustentados pela boa vontade dos solidários. Ela cada vez pior. Já não gemia, mas grunhia, emitia sons agudos e doídos, que pareciam facas a retalhar um tecido já podre. Seus movimentos eram limitados e endurecidos, com dedos que mais pareciam garras magrelas e rijas.
De vez em quando, ele se punha a contemplá-la e era impossível não ver na mulher esquelética aquela menininha barulhenta e risonha do passado. O cabelinho ralo esvoaçando prá lá e prá cá. Ele queria ter poder de parar o tempo, não para que ficasse sempre jovem, mas para que pudesse conservar nela a alegria e o sorriso da infância.
E mais uma vez, tiveram que deixar o casebre roto, pois o lugar era de difícil acesso e a doença da irmã ficava pior a cada dia. Ele quase não podia deixá-la sozinha, mas tinha que ausentar-se algumas vezes. Assim sendo, a irmã mais velha dos dois resolveu apresentar-se ao ser intimada pela assistência social e levou-os a viver num cômodo que possuía nos fundos de sua residência. Mas ele ficaria totalmente responsável pelos cuidados com a mulher, incluindo a limpeza da mesma e do cômodo. Isso era muito fácil para ele.
Num domingo, a irmã parecia em paz e ressonava após uma terrível noite de gemidos e uivos. Ele resolveu ir até a pracinha da cidade e como era bem perto dali, chegou até a feira livre. Braços às costas, passeava lentamente no corredor central da feira, onde o sol já fazia as verduras perderem seu viço. Já era mais de meio dia. Olhando para os diversos tons do verde na banca, lembrou-se da horta que algumas vezes ajudou o pai a cuidar. Sua tarefa era regar as plantas para que ficassem sempre verdinhas. Ele estava muito longe em seu pensamento e nem percebeu que a mulher da banca falava com ele.
- Senhor?
Quando voltou prá ela seus olhos claros e tristonhos, a mulher calou-se por um instante. Mas logo retomou o trabalho de limpeza da banca e falou como se estivesse dirigindo instruções ao cão:
- Ali... Aquelas verduras ali da ponta...vamos jogar fora.. Pode levar se quiser...
Ele desviou os olhos para olhar o local que a mulher apontava e viu destroços, folhas amontoadas de qualquer coisa que lembrava alface. Será que porcos comeriam? Olhou para os lados discretamente... Será que ela falava mesmo com ele?
Sentiu um imenso calor, pois sua pele era branca e rosada. Sim. Seu rosto queimava e ele sentia que estava avermelhado. Cabisbaixo, mudo e de olhos grudados no chão, afastou-se lentamente. Sentia que até o paralelepípedo lhe colava na sola dos sapatos toscos. No fundo ele sabia que não era o sol que lhe aquecia a face, mas a vergonha. Ele fora confundido com um mendigo, a mulher lhe oferecera esmola! No caminho de volta, só olhava o chão. Agora não andava mais devagar, queria chegar logo ao seu esconderijo e esquecer o episódio.
Lá na rua ouvia os grunhidos da irmã. Ela não tinha mais forças e algumas vezes, apenas sibilava, emitia sons guturais assustadores. Mas sabia que ela estava ali a seu lado e que dependia totalmente dele. Isso o fortalecia apesar de saber que ela estava de partida. A velha menininha ia deixá-lo!
Uma moça lavava roupas no tanque e passou por ela ouvindo a água rolando na pedra. Viu o rio de sua infância no fio de água que escorria pelo quintal empedrado. Pisoteou a lama fininha que se formara no cantinho da calçada. A roupa no varal acenava para ele em mangas coloridas e pernas dançantes de ceroulas e calças de homem. Os vestidos valsavam e depois o vento veio para desmanchar seu topete loiro agrisalhado.
E a ambulância sonora e reluzente veio apanhá-la porque os braços do irmão não mais podiam carregá-la. Nem sequer o deixaram ajudar com a maca. Passaram por ele e o homem achou que ela o fitou pedindo socorro, pedindo sua mão, seu ombro forte, seu olhar terno e manso. A gargalhada sonora da menininha passou por ele e o vento tratou logo de dispersá-la no canto dos pardais que se amontoavam na goiabeira.
A noite foi de silêncio mortal e gelado. Os farrapos que cobriam a irmã agora eram ocupados pelo cão que sentia a falta do ser barulhento. Ele enxotou o animal e depois se arrependeu e as lágrimas embotaram o azul de seus olhos. Ele a queria de volta, mas sabia ser impossível. E naquele exato momento, no quarto frio e de paredes pintadas de azul morto, ela parou de gritar. Deixou-se vencer pela vida e foi levada pela morte. O homem de cabelos emaranhados chorava em silencio no quarto escuro.
O dia estava amanhecendo e ele notou as nesgas de sol que insistiam em enfiar-se por debaixo da porta. Os bem-te-vis já estavam alvoroçados e buscavam pelos companheiros dos outros quintais. Nem uma brisa veio para atiçar seus cabelos. As folhas estavam grudadas nas árvores e as flores tinham mil pétalas cada uma. Um pássaro solitário desfiava um vasto repertório empoleirado no varal. Havia um cheirinho de roupa lavada no ar.
Lá fora, uma garotinha passava com sua maleta indo para a escola e uma gargalhada fenomenal ela calou quando viu o homem chorando no portão. Seus olhos se cruzaram e ela sorriu quando viu que o homem sorrira pra ela. Ele sabia que vivera tudo o que tinha que viver e que valera cada lágrima, cada sorriso, cada silêncio, cada grito. Tudo valera à pena. A menininha agora estava em paz.... E ele também!
Na Galeria, fotos de Marilza Ribeiro. Em uma delas, com Terezinha Pelisson e Wandrea Dutra. As três foram juradas do último FESTIBI - Festival de Teatro de Ibiporã.